quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Freud



Entrevista concedida por Freud ao jornalista americano George Sylvester Viereck, em 1926. (Considerada perdida até a Versão condensada datada de 1976, publicada integralmente no Journal of Psychology - Psychoanalysis and the Fut - Edição Especial, N.Y. em 1957)

Publicada também no livro "A Arte da Entrevista", Fabio Altman, Ed. Scritta, SP, 1995.

Entrevista original: "Glimpses of the Great", G.S.Viereck, NY, London, Berlim.



- Setenta anos ensinaram-me a aceitar a vida com serena humildade.

Quem fala é o professor Sigmund Freud, o grande explorador da alma. O cenário da nossa conversa foi uma casa de verão no Semmering, uma montanha nos Alpes austríacos.

Eu tinha visto o pai da psicanálise pela última vez em sua casa modesta na capital Austríaca. Os poucos anos entre minha última visita e a atual multiplicaram as rugas na sua fronte. Intensificaram a sua palidez de sábio. Sua face estava tensa, como se sentisse dor. Sua mente estava alerta, seu espírito, firme, sua cortesia, impecável como sempre, mas um ligeiro impedimento da fala me assustou.

Parece que um tumor maligno no maxilar superior necessitou ser operado. Desde então Freud usa uma prótese, para ele causa de constante irritação.

- Detesto o meu maxilar mecânico, porque a luta com o aparelho me consome tanta energia preciosa. Mas prefiro um maxilar mecânico a maxilar nenhum. Ainda prefiro a existência à extinção. Talvez os deuses sejam gentis conosco, tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos. Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que o fardo que carregamos.

Freud se recusa a admitir que o destino lhe reserva algo especial.

Porque - disse calmamente - deveria eu esperar um tratamento especial? A velhice, com suas agruras, chega para todos. Atinge uma pessoa aqui, outra ali. Seus golpes sempre alcançam um ponto vital. A vitória final pertence ao Verme Conquistador.

"Out - out are the ligths - out all!

And over each quivering form

The curtain, a funeral pall

Comes down, with the rush of a storm

And the angels, all palid and wan,

Uprising, unveiling, affirm

That the play is the tragedy "Man",

And its hero the Conqueror Worm."

("Apagam-se, apagam-se as luzes - todas!/ E sobre cada forma trêmula/ Cai a cortina, um pano mortuário/ Com um ímpeto de tempestade/ E os anjos, pálidos e lânguidos,/ Erguendo-se, desvelando-se, afirmam/ Que a peça é a tragédia "Homem"/ E o seu herói, o Verme Conquistador.").

"Eu não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, vivi mais de setenta anos. Tive o bastante para comer. Apreciei muitas coisas - a companhia de minha mulher, meus filhos, o pôr-do-sol. Observei as plantas crescerem na primavera. De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso querer?"

- O senhor teve a fama - disse eu. - Sua obra influi na literatura de cada país. O homem olha a vida e a si mesmo com outros olhos, por causa do senhor. E recentemente, no seu septuagésimo aniversário, o mundo se uniu para homenagea-lo - com exceção da sua própria universidade!

- Se a Universidade de Viena me demonstrasse reconhecimento, eu ficaria embaraçado. Não há razão porque deveriam aceita a mim e a minha obra porque tenho setenta anos. Eu não atribuo importância insensata aos decimais. A fama chega apenas quando morremos e, francamente, o que vem depois não me interessa. Não aspiro à glória póstuma. Minha modéstia não é virtude.

- Não significa nada o fato de que o seu nome vai viver?

- Absolutamente nada, mesmo que ele viva, o que não é certo. Estou bem mais preocupado com o destino de meus filhos. Espero que a vida deles não venha a ser difícil. Não posso ajudá-los muito. A guerra praticamente liquidou com minhas posses, o que havia poupado durante a vida. Mas posso me dar por satisfeito. O trabalho é minha fortuna.

Estávamos subindo e descendo uma pequena trilha no jardim da casa. Freud acariciou ternamente um arbusto que floria.

- Estou muito mais interessado neste botão do que no que possa acontecer depois de morto.

- Então o senhor é, afinal de contas, um profundo pessimista?

- Não, não sou. Não permito que nenhuma reflexão filosófica estrague a minha fruição das coisas simples da vida.

- O senhor acredita na persistência da personalidade após a morte, de alguma forma que seja?

- Não penso nisso. Tudo que vive perece. Porque deveria o homem constituir uma exceção?

- Gostaria de retornar em alguma forma, de ser resgatado do pó? O senhor não tem, em outras palavras, desejo de imortalidade?

- Sinceramente, não. Se reconhecemos os motivos egoístas por trás de toda conduta humana, não temos o mínimo desejo de voltar. A vida, movendo-se num círculo, seria ainda a mesma. Além disso, mesmo se o eterno retorno das coisas, para usar a expressão de Nietzsche, nos dotasse novamente do nosso invólucro carnal, para que serviria isso, sem memória? Não haveria elo entre passado e futuro. Pelo que me toca, estou perfeitamente satisfeito em saber que o eterno aborrecimento de viver finalmente passará. Nossa vida é necessariamente uma série de compromissos, uma luta interminável entre o ego e seu ambiente. O desejo de prolongar a vida excessivamente me parece absurdo.

- O senhor desaprova as tentativas de seu colega Steinach, de prolongar o ciclo da existência humana?

- Steinach não tenta prolongar a vida. Ele apenas combate a velhice. Recorrendo ao reservatório de energia em nosso próprio corpo, ele ajuda os tecidos a resistir à doença. A operação de Steinach detém acidentes biológicos molestos, como o câncer em estágios iniciais. Torna a vida mais viável: não a torna mais digna de ser vivida. Não há motivo para desejar viver mais longamente. Mas há todo motivo para desejar viver o menor desgosto possível. Eu sou razoavelmente feliz, porque sou grato pela ausência de dor e pelos pequenos prazeres da vida, pelos meus filhos e por minhas flores.

- Bernard Shaw sustenta que vivemos muito pouco - disse eu. - Ele acha que o homem pode prolongar a vida, se assim desejar, levando sua vontade a atuar sobre as forças da evolução. Ele crê que a humanidade pode reaver a longevidade dos patriarcas.

- É possível, respondeu Freud, que a morte em si não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos morrer. Assim como amor e ódio por alguém habitam nosso peito ao mesmo tempo, assim também toda vida conjuga o desejo de manter-se e um anseio pela própria destruição. Do mesmo modo como um pequeno elástico esticado tende a assumir a forma original, assim também toda matéria viva, consciente ou inconscientemente, busca readquirir a completa e absoluta inércia da existência inorgânica. O impulso de vida e o impulso de morte (life-wish and death-wish) habitam lado a lado dentro de nós.

- A morte é a companheira do amor - prosseguiu Freud - Juntos eles regem o mundo. Isso é o que diz meu livro Além do Princípio do Prazer. No começo a psicanálise supôs que o amor tinha toda a importância. Agora sabemos que a Morte é igualmente importante.

"Biologicamente , todo ser vivo, não importa quão intensamente a vida queime dentro dele, anseia pelo Nirvana, pela cessação da "febre chamada viver", anseia pelo seio de Abraão. O desejo pode ser encoberto por digressões. Não obstante, o objetivo derradeiro da vida é a sua própria extinção."

- Isso - exclamei - é a filosofia da autodestruição . Ela justifica o auto-extermínio. Levaria logicamente ao suicídio universal imaginado por Eduard von Hattmann.

- A humanidade não escolhe o suicídio, porque a lei do seu ser desaprova a via direta para o seu fim. A vida tem que completar o seu ciclo de existência. Em todo ser normal, o impulso de vida é forte o bastante para contrabalançar o impulso da morte, embora no final esta resulte mais forte. Podemos entreter a fantasia de que a Morte nos vem por nossa própria vontade. Seria possível que pudéssemos vencer a Morte, não fosse por aliado dentro de nós.

"Neste sentido" , acrescentou Freud com um sorriso, "pode ser justificado dizer que toda morte é suicídio disfarçado".

Estava ficando frio no jardim. Prosseguimos a conversa no gabinete.

Vi uma pilha de manuscritos sobre a mesa, com a caligrafia clara de Freud.

- Em que o senhor está trabalhando ?

- Estou escrevendo uma defesa da análise leiga, da psicanálise praticada por leigos. Os doutores querem tornar a análise ilegal para os não - médicos. A História, essa velha plagiadora, repete-se após cada descoberta. Os doutores combatem cada nova verdade no começo; depois procuram monopolizá-la.

- O senhor teve apoio dos leigos ?

- Alguns dos meus melhores discípulos são leigos.

- O senhor está praticando muito a psicanálise?

- Certamente. Nesse momento estou trabalhando num caso muito difícil, tentando desatar os conflitos psíquicos de um interessante novo paciente. Minha filha também é psicanalista, como você vê ...

Nesse ponto apareceu Miss Anna Freud acompanhada por seu paciente, um garoto de onze anos, de feições inconfundivelmente anglo-saxãs.

- O senhor já analisou a si mesmo?

- Certamente . O psicanalista deve constantemente analisar a si mesmo. Analisando a nós mesmos, ficamos mais capacitados a analisar os outros. O psicanalista é como o bode expiatório dos hebreus. Os outros descarregam seus pecados sobre ele. Ele deve praticar sua arte à perfeição, para desvencilhar-se do fardo jogado sobre ele.

- Minha impressão - observei - é de que a psicanálise desperta em todos os que a praticam o espírito da caridade cristã. Nada existe na vida humana que a psicanálise não possa nos fazer compreender. "Tout comprendre, c’ est tout pardonner" .

- Pelo contrário! - esbravejou Freud, suas feições assumindo a severidade de um profeta hebreu. - Tudo compreender não é tudo perdoar. A psicanálise nos ensina não apenas o que podemos suportar, mas também o que devemos evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância para com o mal não é de maneira alguma um colorário do conhecimento.

Compreendi subitamente porque Freud entrara em litígio com os seguidores que o haviam abandonado; ele não perdoa as dissenssões do caminho reto da ortodoxia psicanalítica. Seu senso do que é direito é herança de seus ancestrais. Uma herança de que ele se orgulha como se orgulha de sua raça.

- Minha língua - ele explicou - é o alemão. Minha cultura, minhas realizações são alemãs. Eu me considerava intelectualmente alemão, até que notei o crescimento do preconceito anti-semita na Alemanha e na Áustria alemã. Desde então prefiro denominar - me judeu.

Fiquei algo desapontado com essa observação. Parecia - me que o espírito de Freud deveria habitar as alturas, além de qualquer preconceito de raça, que deveria ser imune a qualquer rancor pessoal. No entanto, precisamente a sua indignação, a sua honesta ira, tornavam no mais atraente como ser humano. Aquiles seria intolerável, não fosse por seu calcanhar !

- Fico contente, Herr Professor, de que também o senhor tenha seus complexos, de que também o senhor demonstre que é um mortal.

- Nossos complexos - replicou Freud - são a fonte de nossa franqueza; mas com freqüência são também a fonte de nossa força.

- Imagino - observei - quais seriam os seus complexos !

- Uma análise séria - respondeu Freud - dura ao menos um ano. Pode durar mesmo dois ou três anos. Você está dedicando muitos anos de sua vida à "caça aos leões ". Você procura sempre as pessoas de destaque para sua geração : Roosevelt, o Kaiser, Hindenburg, Briand, Foch, Joffe, Gerg Brandes, Gerhart Hauptmann e George Bernard Shaw ...

- É parte do meu trabalho.

- Mas é também sua preferência. O grande homem é um símbolo. A sua busca é a busca de seu coração. Você está procurando o grande homem para tomar o lugar de seu pai. É parte de seu "complexo do pai".

Neguei veementemente a afirmação de Freud. No entanto, refletindo sobre isso, parece - me que pode haver uma verdade, ainda não suspeita por mim, em sua sugestão casual. Pode ser a mesma atração que me levou a ele.

- Gostaria - observei após um momento - de poder ficar aqui o bastante para vislumbrar meu coração através dos seus olhos. Talvez, como a Medusa, eu morresse de pavor ao ver minha própria imagem ! Entretanto, receio ser muito informado sobre a psicanálise. Eu freqüentemente anteciparia, ou tentaria antecipar, suas intenções.

- A inteligência, num paciente - replicou Freud - não é um empecilho. Pelo contrário, às vezes facilita o trabalho.

Nesse ponto, o mestre da psicanálise diverge de muitos dos seus seguidores, que não gostam de excessiva segurança no paciente sob seu escrutínio.

- Às vezes imagino - questionei - se não seríamos mais felizes caso soubéssemos menos dos processos que dão forma a nossos pensamentos e emoções. A psicanálise rouba à vida seu último encanto, ao relacionar cada sentimento ao seu grupo original de complexos. Não nos tornamos mais alegres descobrindo que nós todos abrigamos em nossos corações o selvagem, o criminoso e o animal.

- Que objeção pode haver contra os animais ? - replicou Freud. - Eu prefiro a companhia dos animais à companhia humana.

- Porquê ?

- Porque são tão mais simples! Não sofrem de uma personalidade dividida, da desintegração do ego, que resulta da tentativa do homem de adaptar-se a padrões de civilização demasiado elevados para o seu mecanismo intelectual e psíquico. O selvagem, como o animal, é cruel, mas não tem a maldade do homem civilizado. A maldade é a vingança do homem contra a sociedade, pelas restrições que ela impõe. As mais desagradáveis características do homem são geradas por esse ajustamento precário a uma civilização complicada. É o resultado do conflito entre nossos instintos e nossa cultura. Muito mais agradáveis são as emoções simples e diretas de um cão, ao balançar a cauda, ou ao latir expressando seu desprazer. As emoções do cão - acrescentou Freud pensativamente - lembram-nos os heróis antigos como Aquiles e Heitor.

- Meu cachorro - disse eu - é um doberman pinscher chamado Ajax.

Freud sorriu.

- Fico contente de que não possa ler. Ele certamente seria um membro menos querido da casa, se pudesse latir sua opinião sobre os traumas psíquicos e complexos de Édipo!

- Mesmo o senhor, professor, acha a existência complexa demais. No entanto parece - me que o senhor é em parte responsável pelas complexidades da civilização moderna. Antes que o senhor inventasse a psicanálise, não sabíamos que nossa personalidade é dominada por uma hoste beligerante de complexos muito questionáveis. A psicanálise fez da vida um quebra - cabeças complicado.

- De maneira alguma - respondeu Freud. - A psicanálise torna a vida mais simples. Adquirimos uma nova síntese depois da análise. A psicanálise reordena um emaranhado de impulsos dispersos, procura enrolá-los em torno do seu carretel. Ou, modificando a metáfora, ela fornece o fio que conduz a pessoa para fora do labirinto do seu inconsciente.

- Ao menos na superfície, porém, a vida humana nunca foi mais complexa. E a cada dia alguma nova idéia proposta pelo senhor ou por seus discípulos torna o problema da conduta humana mais intrigante e mais contraditório.

- A psicanálise, pelo menos, jamais fecha a porta a uma nova verdade.

- Alguns dos seus discípulos, mais ortodoxos do que o senhor, apegam - se a cada pronunciamento que sai da sua boca.

- A vida muda. A psicanálise também muda - observou Freud. - Estamos apenas no começo de uma nova ciência.

- A estrutura científica que o senhor ergueu me parece ser muito elaborada. Seus fundamentos, a teoria do "deslocamento", da "sexualidade infantil", do "simbolismo dos sonhos" etc. . , parecem permanentes.

- Eu repito, porém, que nós estamos apenas no início. Sou apenas um iniciador. Consegui desencavar monumentos soterrados nos substratos da mente. Mas ali onde eu descobri alguns templos, outros poderão descobrir continentes.

- O senhor ainda coloca ênfase sobretudo no sexo ?

- Respondo com as palavras do seu próprio poeta, Walt Whitman : "Mas tudo faltaria, se faltasse o sexo" ("Yet all were lacring, if Sex were lacring" ). Entretanto, já lhe expliquei que agora coloco ênfase quase igual naquilo que está "além" do prazer, a morte, a negação da vida. Esse desejo explica por que alguns homens amam a dor, como um passo para o aniquilamento ! Explica por que todos buscam o descanso, por que os poetas agradecem a

"Whatever gods there be,

That no life lives forever

That no life lives forever

And even the weariest river

Winds somewhere safe to sea".

("Quaisquer deuses que existam / Que vida nenhuma viva para sempre / Que os mortos jamais se levantem / E também o rio mais cansado / Deságüe tranqüilo no mar".)

- Shaw, como o senhor, não deseja viver para sempre - comentei -, mas, ao contrario do senhor, ele considera o sexo desinteressante.

- Shaw - respondeu Freud sorrindo - não compreende o sexo. Ele não tem a mais remota concepção do amor. Não há um verdadeiro caso amoroso em qualquer de suas peças. Ele ridiculariza o amor de Júlio césar, talvez a maior paixão da história. Deliberadamente, talvez maliciosamente, ele despe Cleópatra de toda a grandeza, reduzindo - a uma insignificante garota. A razão para a estranha atitude de Shaw diante do amor, para sua negação do móvel de todas as coisas humanas, que tira de suas peças o apelo universal, apesar do seu enorme alcance intelectual, é inerente à sua psicologia. Em um de seus prefácios, ele mesmo enfatiza o traço ascético do seu temperamento. Eu posso Ter errado em muitas coisas, mas estou certo de que não errei ao enfatizar a importância do instinto sexual. Por ser tão forte, ele se choca sempre com as convenções e salvaguardas da civilização. A humanidade, em uma espécie de autodefesa, procura negar sua importância. Se você arranhar um russo, diz o provérbio, aparece o tártaro sob a pele . Analise qualquer emoção humana, não importa quão distante esteja da esfera da sexualidade, e você certamente encontrará esse impulso primordial, ao qual a própria vida deve a perpetuação.

- O senhor sem dúvida foi bem sucedido em transmitir esse ponto de vista aos escritores modernos. A psicanálise deu novas intensidades à literatura.

- Também recebeu muito da literatura e da filosofia. Nietzsche foi um dos primeiros psicanalista. É surpreendente até que ponto sua intuição prenuncia as nossa descobertas. Ninguém se apercebeu mais profundamente dos motivos duais da conduta humana e da insistência do princípio do prazer em predominar indefinidamente. O seu Zaratustra diz :

"A dor

Grita : vai !

Mas o prazer quer eternidade

Pura, profunda eternidade".

A psicanálise pode ser menos amplamente discutida na Áustria e na Alemanha que nos Estados Unidos, a sua influência na literatura é intensa, porém, Thomas Mann e Hugo von Hofmannsthal muito devem a nós. Schnitzler percorre uma via que é, em larga medida, paralela ao meu próprio desenvolvimento. Ele expressa poeticamente o que eu tento comunicar cientificamente. Mas o Dr. Schnitzler não é apenas um poeta, é também um cientista.

O senhor - repliquei - não é apenas um cientista, mas também um poeta. A literatura americana - continuei - está impregnada da psicanálise. Rupertt Harvey O Higgins e outros fazem - se de seus intérpretes. É quase impossível abrir um novo romance sem encontrar referência à psicanálise. Entre os dramaturgos, Eugene O "Neill e Sydney Howard têm profunda dívida para com o senhor .The Silver cord, por exemplo, é simplesmente uma dramatização do complexo de Édipo.

- Eu sei - replicou Freud - e aprecio o cumprimento que há nessa constatação. Mas tenho receio da minha popularidade nos Estados Unidos. O interesse americano pela psicanálise não se aprofunda. A popularização leva à aceitação superficial sem estudo sério. As pessoas apenas repetem as frases que aprendem no teatro ou na imprensa. Pensam compreender algo da psicanálise, tal como ocorre nos centros Europeus. A América foi o primeiro país a reconhecer-me oficialmente. A Clark University concedeu-me um diploma honorário quando eu era ignorado na Europa. Entretanto, a América fez poucas contribuições originais à psicanálise. Os americanos são divulgadores inteligentes, raramente são pensadores criativos. Os médicos, nos Estados Unidos, e ocasionalmente também na Europa,, procuram monopolizar para si a psicanálise. Mas seria um perigo para a psicanálise deixá-la exclusivamente nas mão de um médico. Pois uma formação estritamente médica é com freqüência um empecilho para o psicanalista. É sempre um empecilho, quando certas concepções científicas ficam arraigadas no cérebro do estudioso.



Freud tem que dizer a verdade a qualquer preço! Ele não pode obrigar a si mesmo a agradar a América, onde está a maioria dos seus admiradores.

Apesar da sua integridade, Freud é a urbanidade em pessoa. Ele ouve pacientemente cada intervenção, não procurando jamais intimidar o entrevistador. Raro é o visitante que deixa a sua presença sem algum presente, algum sinal de hospitalidade!

Havia escurecido. Era tempo de eu tomar o trem de volta à cidade que uma vez abrigara o esplendor imperial dos Habsburgos.

Acompanhado da esposa e da filha, Freud desceu os degraus que levam do seu refúgio na montanha à rua, para me ver partir. Ele me pareceu cansado e triste ao dar o seu adeus.

- Não me faça parecer um pessimista - disse ele após um aperto de mão. - Eu não tenho desprezo pelo mundo. Expressar desdém pelo mundo é apenas outra forma de cortejá-lo, de ganhar audiência e aplauso. Não, eu não sou um pessimista, não enquanto tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores! Não sou infeliz - ao menos não mais infeliz que os outros.

O apito do meu trem soou na noite. O automóvel me conduziu rapidamente para a estação. Aos poucos, o vulto ligeiramente curvado e a cabeça grisalha de Sigmund Freud desapareceram na distância ...

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Woody Allen

Woody Allen lança "O Sonho de Cassandra"



da Folha de S.Paulo

Aos 72, Woody Allen lança "O Sonho de Cassandra", que estréia hoje no Brasil, reclamando de Hollywood, da velhice, da crítica e até de seus filmes... Em entrevista a Bruno Lester, da International Feature Agency, nega que seja um "intelectual": "Não me interesso por livros complicados". Allen comenta ainda o lado trágico de "Cassandra", em que Ewan McGregor e Colin Farrell vivem irmãos endividados que recebem proposta para cometer um crime.
Henny Ray Abrams/AP
Cineasta Woody Allen diz que gosta é de fazer drama a jornal francês
Cineasta Woody Allen lança "O Sonho de Cassandra" e diz que prefere três de seus filmes

PERGUNTA - Do que trata "O Sonho de Cassandra"?
WOODY ALLEN - É simplesmente a história de alguns jovens muito simpáticos que se envolvem numa situação trágica, em função de suas fraquezas e ambições. A intenção deles é boa. Eles foram educados com decência, mas os acontecimentos e seus próprios atos os conduzem a um final trágico.

PERGUNTA - Como "Crimes e Pecados", é sobre morte e culpa.
ALLEN - Sempre me interessei pelo assassinato e pelo lado sombrio do drama e da tragédia. O assassinato é uma das ferramentas que dramaturgos e cineastas vêm usando há séculos para elucidar o que querem mostrar, quer fossem tragédias gregas, Shakespeare ou, mais adiante, os suicídios nas peças de Arthur Miller. Tirar a vida é um ato muito dramático e que me interessa muitíssimo.

PERGUNTA - Fazia algum tempo que você não criava um drama.
ALLEN - Acontece que meus pontos fortes mais evidentes sempre foram cômicos, mas eu sempre quis ser um escritor trágico -escritor de materiais trágicos. Finalmente, agora que estou ficando mais velho, estou tendo a chance de fazê-lo.

PERGUNTA - Você disse uma vez que a vida é "uma experiência bastante trágica".
ALLEN - Sempre senti que a vida é uma confusão muito grande. Tenho uma visão sombria e pessimista da vida e da fé do homem, da condição humana. Mas acho que há alguns oásis extremamente divertidos no meio dessa miragem. Há momentos de prazer e momentos que são divertidos, mas, basicamente, a vida é trágica.

PERGUNTA - Por que você deixou de fazer filmes nos EUA?
ALLEN - É mais fácil conseguir financiamento na Europa. Me dão mais liberdade, porque se respeita o artista mais do que nos EUA. Quando estúdios de Hollywood financiam meus filmes, eles interferem muito. Na Europa, me deixam fazer o que eu quiser. Além disso, aqui eu consigo fazer filmes a um custo mais baixo, e eles não ficam parecendo filmes feitos com pequeno orçamento.

PERGUNTA - "O Sonho de Cassandra" foi recebido com frieza em Veneza, em setembro do ano passado. Você lê as críticas de seus filmes?
ALLEN - Não o faço há 30 anos. Elas não me ajudam. Também nunca assisto a documentários ou leio artigos a meu respeito, porque representam imagens de mim que não reconheço. Não fiz nada de diferente em "O Sonho de Cassandra" do que fiz em outros filmes anteriores.

PERGUNTA - Todo ano há um novo filme de Woody Allen. Como se explica você ser tão produtivo?
ALLEN - É o que faço e tenho bastante tempo livre. Tenho metade do ano sem nada para fazer. Quando termino um filme, fico parado em meu apartamento, caminho pelas ruas, e então tenho uma idéia e penso: "Meu Deus, isso vai ser um outro "Cidadão Kane'!". Começo a escrever e, em pouco tempo, estou com um roteiro. É claro que, quando o resultado está ali, não é nenhum "Kane".

PERGUNTA - Você já recebeu 21 indicações e três Oscars (roteiro e direção de "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa" e roteiro de "Hannah e Suas Irmãs"). O que está faltando? Você pensa em se aposentar algum dia?
ALLEN - Enquanto puder continuar a fazer filmes, não vejo razão para não fazê-los. O que mais deveria fazer? Gosto de trabalhar. Sinto prazer em escrever, é meu hobby.

PERGUNTA - E sua saúde é boa.
ALLEN - Nunca estive no hospital; ainda sou ativo. Tenho bons genes. Minha mãe chegou aos 98 anos; meu pai, aos 100. Mas envelhecer é uma coisa terrível. Minha vista já não é o que era, perdi um pouco da audição, a comida não tem o mesmo gosto. Não ganhei sabedoria nenhuma. Não há nada de bom em envelhecer. Você simplesmente deteriora e morre.

PERGUNTA - É mais fácil escrever comédias do que dramas?
ALLEN - Sei mais sobre a comédia, então ela parece vir à tona a todo momento. É claro que quem escreve comédia pensa que a verdadeira essência do mundo está nas mãos dos escritores de dramas sérios. E não há nada que os autores de dramas sérios gostariam mais do que escrever comédias.

PERGUNTA - Por que você não anda atuando tanto quanto antes?
ALLEN - Eu atuo apenas quando acho que sou a pessoa perfeita para o papel. Não sou realmente um ator. Sou muito, muito limitado. Sou capaz de dizer falas espirituosas curtas, e isso é divertido. Consigo representar o tipo de personagem nova-iorquino neurótico que se assemelha ao que sou na vida real.

PERGUNTA - Quando passa algum tempo sem atuar, sente falta disso?
ALLEN - Não. Não me chatearia se eu nunca mais voltasse a atuar. Não ligo. Acho difícil avaliar minha própria performance quando estou na sala de edição. Quase sempre me odeio. É tão constrangedor ver sua imagem na tela grande, agindo como uma pessoa tola. Então, minha tendência é jogar fora muitas coisas que faço, enquanto outras pessoas dizem: "Oh, não tire isso do filme, isso é engraçado". Então, o que você vê na tela -acredite se quiser- é a destilação do que eu consegui fazer de melhor. Portanto, você pode imaginar o que vai parar na máquina de picar papel!

PERGUNTA - Por que você não deixa seus atores lerem o roteiro inteiro?
ALLEN - Constatei que, se eles não sabem o que está acontecendo, não representam o resultado de suas ações. Eles não atuam sabendo para onde vai o roteiro -atuam de maneira muito espontânea, porque não têm certeza do que está acontecendo. E, de fato, os personagens não devem saber o que está acontecendo.

PERGUNTA - Você é conhecido por não dar muita direção.
ALLEN - Não gosto de sobrecarregar atores com muita conversa, análise e direção. Contrato as melhores pessoas, e então saio do caminho delas. Dou liberdade enorme aos atores.

PERGUNTA - "Vicky Cristina..." é estrelado por Scarlett Johansson. É o terceiro filme que fazem juntos. O que há de especial nela?
ALLEN - Ela tem tudo: é linda, sexy, inteligente, divertida, espirituosa e boa para se trabalhar. Gosto de tudo nela. Se ela mantiver a cabeça no lugar nesse campo de trabalho maluco, o futuro será dela.

PERGUNTA - Como você se sente com a história de ela ser descrita como sua musa?
ALLEN - Fico grato quando a chamam de minha musa, mas não é verdade. Com Diane Keaton, foi diferente. Fizemos oito ou nove filmes e tínhamos uma ligação especial. Mas gosto de trabalhar com Scarlett.

PERGUNTA - Você fica nervoso durante as filmagens?
ALLEN - Nunca fico nervoso quando estou escrevendo ou dirigindo, mas o pânico se instala no momento da montagem, quando você vê tudo o que fez. É um banho de água fria.

PERGUNTA - Você não costuma ficar satisfeito com os resultados?
ALLEN - Não. Quando está filmando, você sempre pensa que está fazendo história, e, quando termina, você diz: "Meu Deus, o que eu fiz?". Sempre pensei que tenho um pouco de talento e muita sorte.

PERGUNTA - De quais filmes seus você se orgulha mais?
ALLEN - Tenho três dos 39 filmes que fiz: "Match Point", "A Rosa Púrpura do Cairo" e "Maridos e Esposas". Todos os outros, eu gostaria de refazer.

PERGUNTA - Alguma vez você já ficou tão decepcionado com um filme que não queria que estreasse?
ALLEN - Fiquei muito decepcionado com "Manhattan". Prometi ao estúdio que, se não o lançasse, eu faria o filme seguinte de graça. Mas o estúdio se recusou, e o filme teve bom desempenho. Com "Setembro", foi o mesmo. Disse ao estúdio que queria refilmar tudo.

PERGUNTA - Você é admirado por outros cineastas. Você enxerga a sua influência no trabalho deles?
ALLEN - Nunca senti que influenciei ninguém. Não quero que isso soe como falsa modéstia, mas sempre pude sentir a influência de meus contemporâneos -Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Robert Altman, Steven Spielberg- e nunca vi minha influência sobre ninguém.

PERGUNTA - Quem o inspirou mais?
ALLEN - Provavelmente os comediantes Groucho Marx e Bob Hope.

terça-feira, 15 de abril de 2008